A Lapa foi destruída, ela não se destruiu sozinha num processo de decadência até as ruínas dos anos 80 do séc. passado, mas sim foi vítima de um agressivo plano de reforma urbana, que nunca conseguiu deslanchar, e da sabotagem constante dos administradores, que com certeza nesse compasso de espera fizeram de tudo para o valor fundiário da região cair cada vez mais para facilitar as desapropriações, não descartando logicamente as questões higienistas e puritanas, que desejavam acabar com a parte boêmia do bairro, principalmente a localizada entre o Passeio e os Arcos.
Dentre de todos os golpes acredito que o desmonte do Morro de Santo Antônio foi um dos mais sórdidos, principalmente no final do governo JK, quando o morro sofreu um processo de desmonte descuidado e acelerado para permitir a inauguração da Av. Chile abrir espaço para prédios e 4 pistas de rolamento na área aterrada entre a Glória e Flamengo.
O desmonte do morro feito mecanicamente com uso de escavadeiras e caminhões envolvendo a SURSAN e a Igreja, que numa operação nebulosa envolvendo D. Helder Câmara lesou os cofres públicos, fazia que os veículos tivessem que sair da área que era desmontada rumo ao mar, onde a carga era despejada. O mais curioso é que todas as vias localizadas no entorno do morro de Santo Antônio possuiam linhas de bonde, muitas ainda inclusive eletrificadas, que poderiam ter sido utilizadas.
Então a partir de 1958, quando foi aberta uma fenda na Rua do Lavradio, de fronte a Rua da Relação a terra começou a ser espalhada para esse terreno aberto e despejada da encosta para dentro das caçambas. A ordem da PDF que era para a avenida ser aberta de qualquer maneira para ser inaugurada por JK e justificar em algo a construção de Brasilia, fazia que os caminhões saíssem em disparada rumo ao mar, e voltassem. Lonas na caçamba, irrigação nas rodas e no material despejado, lavagem de ruas circundantes e controle dos motoristas tudo era obra de ficção. Colisões, atropelamentos, danos a rede de bondes, abalroamentos nos prédios eram fatos rotineiros, muitas vezes os motoristas fugiam deixando os mortos e feridos no local.
Em pouco tempo as ruas da Lapa foram tomadas por uma densa nuvem de poeira, que colava na fachada das casas, invadia casas comerciais, cegava e sufocava pedestres e deixava crianças que por ventura ainda morassem ou estudassem no bairro condenado doentes. Essa foto mostra a esquina da Rua do Lavradio com a Rua dos Arcos, onde o caminhão entra em desabalada carreira rumo ao mar.
Fachadas esbranquiçadas, entre imóveis já em ruínas e semi demolidos nos remetem a uma cidade alemã depois de algum bombardeio da RAF ou da USAF, mesmo nesse cenário a Rua dos Arcos ainda mantinha muitas empresas e até mesmo residencias, que se manteriam até mesmo quando mais uma descida de de material seria concluída com a demolição do último dos sobrados mais a frente onde o casario já estava falho. Ao fundo a construção pesada era a Fundição Progresso, que ainda funcionava, apesar dos imóveis em volta estarem sendo demolidos.
Comerciantes reclamavam que as frutas nas bancas das quitandas ficavam todas de uma cor só, a bege, nas confeitarias e padarias a poeira entrava dentro das vitrines, estragando doces e confeitos, a fábrica de Balas e Doces Patrone tinha que funcionar na base do ar-condicionado e janelas fechadas, a Padaria da Lapa tinha que funcionar a meia porta. Nos sobrados crianças eram hospitalizadas e até mesmo na ACM na Rua da Lapa a poeira provocava prejuízos. A situação só ia se agravando até o ano de 1959, onde a vida no bairro começava a ser inviabilizada totalmente. Em janeiro de 1960 os moradores da Lapa apoiados pelos da Glória e Flamengo, que já sofriam também com os caminhões do desmonte, organizaram um protesto contra a PDF e a SURSAN, comércio fechado, e panos pretos por todo o bairro.
Nessa hora que o presidente da SURSAN engenheiro Maia Penido demonstrou a cruzada moralista que o bairro sofria, junto com os planos urbanísticos que quase todos sabiam que nunca seriam concluídos de pleno através de uma desastrada declaração: “Os males da Lapa, mais que a poeira e a lama são a malandragem e a prostituição” e que os comerciantes não sabiam o que queriam, se sustar a poeira, paralisar o desmonte ou evitar a Av. Norte Sul. Hoje sabemos que pelos menos dois desses pedidos eram realistas. A Norte-Sul até hoje liga nada a lugar nenhum, tendo um papel secundário do transito do Centro, mesmo com a Rio Branco fechada.
Essa foto, com o garoto certamente na frente do negócio da família tentando minorar os efeitos da terra e a poeira traduz muito bem o que foi o processo de destruição do Bairro da Lapa. O local pode ser, pelo poste a Rua do Lavradio ou a Visconde de Maranguape.